S. FRANCISCO E O PRESÉPIO

Devoção à humanidade de Jesus

Autor: GÉRARD GUITTON

Livro: DESCOBRIR S. FRANCISCO DE ASSIS

Braga: Editorial Franciscana, D.L. 2006.

Uma imagem tradicionalmente associada a S. Francisco é a do presépio do Natal. Afirma-se mesmo ter sido ele quem inventou e construiu o primeiro presépio. Vejamos o assunto mais de perto. Quem se dê ao trabalho de navegar na Internet, pode aí ler, a respeito do presépio: «Segundo a tradição, o primeiro a pensar, a construir e a ornamentar um presépio de Natal com as suas personagens e o boi, o jumento e as ovelhas, foi S. Francisco de Assis. Esse grande amigo da natureza e dos animais instalou um presépio numa igreja, e os fiéis acharam a ideia tão bela e sugestiva, que a adoptaram. Mais tarde, na Idade Média, começou a fazer-se a representação dos grandes Mistérios, espectáculos realizados nas próprias igrejas. E então eram personagens vivas a representarem a Sagrada Família nos acontecimentos do nascimento de Jesus. Não tardou que todas as igrejas fizessem o seu presépio de Natal e rivalizas­ sem entre si no sentido de exibirem os figurantes mais luxuosamente vestidos. Mas isso já não era conforme com o espírito de pobreza da Sagrada Família nem do humilde santo de Assis».

PRESÉPIOS ANTES DE S. FRANCISCO

Numa expressão muito superficial mas nem por isso menos verdadeira, poder-se-ia dizer que em toda a história do cristianismo sempre houve presé­pios, no sentido de que os cristãos sempre tiveram desejo de representar de forma plástica, visível, o nascimento de Jesus. Como para exprimir a sua morte se mostra uma cruz, para lembrar o seu nas­cimento encena-se a noite de Belém. Testemunha-o a arte dos ícones. Na basílica de Santa Maria Maior em Roma existe desde o século V um oratório da Natividade representando o presépio do Natal. E não terá havido com certeza peregrino da Terra Santa que não tenha venerado a gruta da Natividade em Belém. Quando S. Francisco, após a viagem ao Egipto em 1220, passou pela Palestina, deve-a ter também visitado, e talvez aí tenha surgido o desejo de materializar as circunstâncias do nascimento do Salvador. Com efeito, lê-se no seu primeiro biógrafo esta frase recheada de sentido: «Dois sentimentos de Cristo empolgavam-no de tal maneira que o não deixavam pensar em mais nada: a humildade expressa no nascimento e o amor manifestado na Paixão».

QUE É QUE ACONTECEU EM GRECCIO?

Foi em 1223, três anos antes da morte do Santo. Quinze dias antes da festa do Natal, Francisco foi ter com um senhor da aldeia de Greccio, no vale de Rieti, a quem manifestou o desejo de celebrar a noite de Natal com grande solenidade, pedindo-lhe para preparar tudo o que pudesse dar uma ideia do nasci­mento de Jesus em Belém. E acrescentou: «Quereria vê-lo com estes meus olhos, exactamente como ele esteve no presépio, deitado a dormir sobre a palha duma manjedoura, entre um boi e um jumento».

Fizeram-lhe a vontade. Mas note-se que S. Francisco, no cenário do que hoje chamamos um presépio, apenas refere a manjedoura com palha e os dois animais. Não pretende fazer qualquer inovação. O boi e o jumento já andavam associados ao Natal numa velha tradição popular, baseada em literatura apócrifa e profética.[1] O mais importante para ele era pôr em relevo a humildade e a pobreza, imaginar Jesus «tal como ele estava», em absoluta privação de tudo, no presépio da gruta de Belém. Pediu também ao proprietário de Greccio que convidasse para a solenidade toda a gente da povoação e dos arredores. Foram muitos os que aceitaram o convite e vieram, armados de archotes, tomar parte na festividade onde não faltava fervor, alegria e luz exterior e inte­rior. Mas essa representação do Natal nem por som­bras se assemelhava aos recentes presépios em miniatura, onde o que mais abunda são bonecos, animados ou não, e as mais das vezes anacrónicos. Tão-pouco se parecia com os presépios vivos que mais tarde vieram a ser representados nas igrejas... Já antes da época de S. Francisco se representavam em igrejas cenas teatrais, chamadas "ludi theatra­les ", que as autoridades eclesiásticas não viam com bons olhos, por causa dos desmandos que poderiam advir. Por esse motivo é que S. Francisco teve o cui­dado de previamente pedir ao papa Honório III auto­rização para a sua iniciativa, a fim de não ser acu­sado de pretender restaurar uma prática proibida desde 1207 por outro papa anterior, Inocêncio III.

O Natal de Greccio foi portanto acontecimento único. Nem presépio vivo, teatral, como na Idade Média, nem presépio de bonecada como agora apa­rece em igrejas e casas de famílias piedosas. O pre­sépio de S. Francisco reduzia-se ao que ele havia muito tempo trazia no coração: celebrar de forma visível e impressionante a humildade do nascimento do Filho de Deus, o mistério da Encarnação. E para esse homem de Deus, cujo sonho era viver a pobreza de Jesus, contemplar a pobreza dum presépio ou curral de gado equivalia a contemplar o próprio Menino de Belém. É preciso nunca esquecer o por­menor: a manjedoura do curral de Greccio só tinha a palha que serviria de alimento aos animais. Não havia personagens vivas a representar Maria nem José, nem qualquer Menino de carne nem de barro. Nunca houve antes nem haverá jamais outro presé­pio como o de Greccio, feito apenas de desejo e de adoração interior. S. Francisco contempla a palha da, manjedoura, e a pobreza e humildade que ela repre­senta faz-lhe vir as lágrimas aos olhos, pois para além dessa palha ele vê em espírito o próprio Filho de Deus. Os seus biógrafos estão de acordo: essa noite representou para ele o triunfo da simplicidade, da pobreza e da humildade. «Greccio transformou-se em nova Belém». O Menino Jesus esteve lá pre­sente, sim, na fé e no amor de Francisco.

O PRESÉPIO E A MISSA

Avancemos um pouco mais no mistério. S. Francisco não pretendeu apenas contemplar o ambiente dum presépio pobre e humilde; quis além disso, e mais do que isso, que lá fosse celebrada a missa da meia-noite do Natal. E há aqui um porme­nor, aparentemente insignificante, mas de grande importância. É que a missa foi celebrada numa mesa colocada por cima da manjedoura - com prévia autorização de Roma, repito: uma espécie de altar portátil, bastante vulgar no nosso tempo, mas inédito na época. Francisco, que era diácono, desempenhou a sua função litúrgica, lendo o evangelho da missa e fazendo a respectiva homilia. Foi notável a maneira como falou da presença do Menino, ele que tanto prazer tinha em falar de Jesus e de Belém. Diz-se que ao pronunciar estes nomes sentia os lábios mais doces que o mel. Após a homilia continuou a missa, e o Pobrezinho adorava a presença real de Jesus enquanto contemplava a manjedoura vazia e pobre. Vazia? Houve quem dissesse que não, que terá visto perfeitamente uma criancinha deitada na palha, e Francisco a olhar para ela enquanto derramava lágrimas de alegria... E que no fim da missa se terá inclinado sobre a manjedoura, que o Menino acor­dou e começou a sorrir, enquanto Francisco o tomava nos braços e cobria de beijos...

Qual o significado de tudo isto? As primeiras testemunhas já o compreenderam, e a lição não per­deu actualidade. Efectivamente, o Menino Jesus estava a dormir em muitos corações humanos. A presença de Francisco acordou-o nesses corações, e em grande número de fiéis despertou a fé em Cristo e o entusiasmo de o anunciar ao mundo. A mensa­gem apresenta uma actualidade flagrante. Um Menino Jesus a dormir, é verdade, e a dormir pro­fundamente na vida de tantos cristãos que se dizem "crentes" mas não praticantes.

Francisco de Assis continua ainda hoje a alertar o mundo: Cristãos, vós é que estais a dormir! Acor­dai! Jesus está pertinho de vós, a dormir também, à espera que o acordeis. Basta apenas que o desejeis, que tenhais um simples gesto de afeição para com o Menino acabado de nascer para salvar o mundo. Quando chegar a festa do Natal, ide contemplar um presépio, não para admirar a bonecada de gesso ou de barro com vestimentas garridas multicores, mas para adorar o Menino que veio ao mundo na maior pobreza e vos convida a venerá-lo, a amá-lo e a segui-lo. Com ele conseguireis realizar maravilhas. Todos os devotos de Francisco têm especial apreço pela festa do Natal, considerada por ele como a festa das festas, «porque nesse dia Deus se fez Menino e foi amamentado como qualquer criança... O nome de Jesus era nos seus lábios doce como mel».

A MISSA, OUTRO NATAL

Ao terminar este capítulo sobre S. Francisco e o presépio, é oportuno aprofundar a importância da missa e da relação que ele estabelecia entre ela e o Natal. Já salientámos o facto de ele querer que em Greccio a missa fosse celebrada por cima duma manjedoura provida apenas de palha. E só no fim da missa ele teria tomado nos braços o Menino Jesus que estava a dormir e lhe sorriu. Como explicar que tenha tido a visão do Menino especialmente no fim da missa? A explicação talvez ele mesmo a tenha dado numa das suas Exortações, onde pede aos fiéis para avivarem a fé na presença real do corpo e do sangue de Cristo no pão e no vinho após a consagração. Diz ele: «Porque não reconheceis a verdade, acreditando no Filho de Deus? Vede como ele se humilha todos os dias, da mesma forma que quando baixou do seu trono régio a tomar carne no seio da Virgem: cada dia ele vem até nós em aparên­cias de humildade; cada dia desce do seio do Pai sobre o altar para as mãos do sacerdote» (Ex 1,15­-18).

Parece não haver dúvida: a missa para S. Fran­cisco é como a renovação da Encarnação de Cristo, que diariamente desce à terra para as mãos dos sacerdotes como desceu uma vez para o seio de Maria. E continua a explicar: Embora «os nossos olhos corporais só vejam ali pão e vinho, os olhos espirituais da fé permitem-nos ver e acreditar que ali está vivo e verdadeiro o seu santíssimo Corpo e Sangue» (Ex 1,21). Era exactamente assim que ele falava ao proprietário de Greccio para preparar o presépio: «Quero vê-lo com os meus olhos corpo­rais, exactamente como ele estava, deitado numa manjedoura, a dormir sobre palha entre um boi e um jumento». Em ambos os casos fala dos "olhos cor­porais": com eles contempla a pobreza do presépio, enquanto com os olhos espirituais vê Jesus a dormir muito sossegado. De forma idêntica, na missa vê com os olhos corporais pão e vinho sobre o altar; e ao comungar contempla com os olhos espirituais o corpo e o sangue do Senhor Jesus vivo e ressuscitado.

Caberá a S. Francisco a glória de ter inventado o presépio? Não o inventou; fez muito mais que isso. Ensinou-nos a olhar para os nossos presépios tradi­cionais de forma diferente, não apenas com os olhos da cara mas também com o olhar do espírito, para vermos neles mais que a bela e comovente decora­ção, a recordação da vinda ao mundo de Jesus como salvador universal. E quem pretenda aprofundar ainda mais a contemplação, pode aprender no presé­pio a renovar a fé na eucaristia: tal como em Grec­cio, em cada missa repete-se sobre o altar uma nova festa de Natal.

O sítio da Internet atrás citado não é absoluta­mente exacto ao apresentar S. Francisco como sendo o primeiro a pensar em construir e adornar um pre­sépio. Nem tão-pouco incluiu no presépio de Grec­cio um boi, um jumento e ovelhas (de que aliás os biógrafos não falam) por ser "grande amigo da natu­reza". Fê-lo por conhecer a Bíblia e respeitar as interpretações tradicionais de certos passos da mesma. Mas no seu presépio não havia mais perso­nagens nem figurações vivas a representar os acon­tecimentos do Natal, simplesmente porque cada fiel é convidado a trazer Cristo no coração pela fé. Já tem razão o referido sítio da Internet ao dar a enten­der que depois de S. Francisco cada igreja gosta de apresentar um presépio para recordar «o espírito de pobreza da Sagrada Família e do humilde Santo de Assis».

 

 

 


[1] 1 O boi e o jumento já andavam tradicionalmente associa­dos à noite de Natal muito antes de S. Francisco. Duas passagens bíblicas terão decerto contribuído para a tradi­ção que veio a ser consignada em evangelhos apócrifos. A propósito do Messias vindouro, diz Habacuc: «Mani­festar-te-ás no meio de dois animais» (Hab 3,2, segundo o grego dos Setenta, diferente do original hebraico). E em Isaías pode ler-se: «O boi conhece o seu dono, e o jumento o estábulo do seu senhor» (Is 1,3). S. Francisco, no seu pedido, segue a tradição.


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